Imóvel cheio de dívidas e na mira para execução: é possível Usucapião para livrá-lo de tudo isso, com um novo começo?

Usucapião

Avaliar a viabilidade da propositura de uma ação (ou procedimento extrajudicial) de Usucapião envolve a análise de diversos aspectos. Em se tratando de questão imobiliária, nossa recomendação baseada na experiência de muitos anos em Cartório obrigatoriamente passa pelo exame da documentação atualizada expedida pelo fólio registral: as certidões do Cartório do Registro de Imóveis podem indicar muito sobre os desafios a serem enfrentados, especialmente depois do advento da Lei 13.097/2015 que em seus artigos 54 e a 58 descortinam o princípio da concentração dos atos na matrícula. Sem prejuízo dessa busca que reputamos mandatória por tudo que o Registro de Imóveis possa dizer sobre o imóvel pretendido, é cediço que outras certidões e consultas poderão revelar informações negativas que recaiam ou possam recair sobre o bem ou sobre pessoas relacionadas ao bem, como dívidas, feitos judiciais, execuções dentre tantos outros aspectos. Considerando a existência de dívidas com possíveis execuções, será possível e viável ainda assim, pelo interessado - que no caso é terceiro nesse cenário - cogitar o exercício da posse qualificada com vistas à propositura de Usucapião buscando com isso regularizar e livrar o imóvel daquele contexto, permitindo-lhe um novo começo, com uma hipotética "ficha limpa"?

Inicialmente é preciso reprisar que a usucapião é um instituto jurídico que permite ao interessado possuidor adquirir a propriedade de um imóvel por meio do exercício comprovado da posse prolongada, contínua, pacífica e com exteriorizada intenção de dono, agir como dono ("animus domini"), nos termos do determinado pelo Código Civil brasileiro.

Devemos sempre relembrar também que com o reconhecimento (judicial ou extrajudicial - sem processo judicial) a Usucapião transfere a propriedade do imóvel ao possuidor que preenche os requisitos legais, EXTINGUINDO o domínio do antigo titular. Dessa forma, o imóvel passa a pertencer ao usucapiente, independentemente de pendências anteriores. Assim, se o imóvel estiver litigioso ou gravado por dívidas do antigo proprietário, essas obrigações não se transferem automaticamente ao novo proprietário decorrente da usucapião. Ocorre aqui um "livramento". Sobre esse peculiar e BRILHANTE aspecto da Usucapião ensina a insigne Ministra NANCY ANDRIGHI em decisão recente da sua relatoria no STJ cuja ementa sintetiza:

"STJ. REsp: 2051106/SP. J. em: 24/10/2023. RECURSO ESPECIAL. CIVIL. USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA. AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA DA PROPRIEDADE. EFEITO LIBERATÓRIO. PENHORA. DÉBITO CONDOMINIAL. OBRIGAÇÃO PROPTER REM. NÃO SUBSISTÊNCIA. (...). 2- O propósito recursal consiste em dizer se a aquisição originária da propriedade pela USUCAPIÃO prevalece sobre o caráter "propter rem" do débito condominial de modo a autorizar a desconstituição de penhora incidente sobre o bem. 3- Em virtude dos efeitos ex tunc do reconhecimento judicial ou EXTRAJUDICIAL da usucapião, a titularidade do bem é concebida ao possuidor desde o momento em que satisfeitos todos os requisitos para a aquisição originária da propriedade. 4- A usucapião insere-se no rol dos modos originários de aquisição de propriedade, pois NÃO HÁ CONEXÃO ENTRE O DIREITO DE PROPRIEDADE QUE DELA SURGE E O DIREITO DE PROPRIEDADE ANTECEDENTE. 5- Em razão do EFEITO LIBERATÓRIO, se a propriedade anterior se extingue pela usucapião, TUDO O QUE GRAVAVA O BEM - e lhe era acessório - TAMBÉM SE EXTINGUIRÁ. Precedentes. 6- Não subsiste eventual penhora incidente sobre o bem objeto de usucapião, pois, extinguindo-se o direito de propriedade ao qual o gravame estava atrelado, não há como prevalecer os ônus que pendiam sobre o bem, ainda que destinados a garantir débito de natureza "propter rem". (...)".

Através da Usucapião uma nova história daquele imóvel, sob a égide do império do novo proprietário passa a ser escrita, rompendo-se com todo o cenário de dívidas e gravames anteriores que porventura pesavam sobre o bem. Não há vínculos, não há transmissão de um para o outro. Apenas o proprietário anterior PERDE em favor do novo proprietário, outrora possuidor, que então o ADQUIRE, desde que reconhecida - judicial ou extrajudicialmente - a Usucapião, como consequencia lógica e única da demonstração dos seus requisitos.

Parece óbvio mas ainda é necessário destacar que a usucapião NÃO EXTINGUE DÍVIDAS PESSOAIS do antigo proprietário, como débitos tributários, fiscais ou outras obrigações vinculadas à pessoa, que podem eventualmente recair sobre o imóvel em fase de execução. Todavia, o usucapiente não responde por essas dívidas pessoais, pois o instituto visa proteger a posse prolongada e o direito real sobre o bem, desvinculando-o das obrigações pessoais anteriores. O Magistrado, Professor e Especialista, Dr. FABIO CALDAS (Usucapião Judicial e Extrajudicial. 2025) esclarece:

"A usucapião encerra uma dualidade ínsita em sua essência, pois, à medida que CRIA um direito, DESTRÓI outro, da mesma natureza. (...) A prescrição AQUISITIVA exige conduta positiva do prescribente, sendo que a EXTINTIVA depende da inércia do proprietário ou credor".

A aquisição via Usucapião é originária e não derivada, como se disse. Nesse aspecto se diferencia da compra e venda e da doação, por exemplo, onde com a transmissão do outorgante para o outorgado, gravames que pesam sobre o bem podem ser transmitidos (obrigações "propter rem"). No que tange a execuções que atingem o imóvel, a usucapião pode representar uma barreira para a constrição judicial, pois a propriedade já terá sido reconhecida em favor do possuidor. Contudo, para que essa proteção seja efetiva, é imprescindível que o usucapiente promova o reconhecimento legal da usucapião, seja judicial ou extrajudicialmente, para que o registro imobiliário seja atualizado, conferindo segurança jurídica contra futuras execuções - e evitando muita dor de cabeça. Dessa forma, a existência de dívidas e a possibilidade de que essas dívidas desaguem em processos de execução que possam consumir o bem não devem representar obstáculo ao reconhecimento da Usucapião - uma vez preenchidos os requisitos legais - especialmente porque reconhecida a Usucapião, nenhuma dessas dívidas e gravames deverão se agarrar à nova apresentação (nova matrícula registral imobiliária) do imóvel, como se viu acima. Tudo aquilo deverá ficar no passado.

Por fim, decisão recente do TJSP prestigiando a "usucapio libertatis" - ou seja, o efeito liberatório que provém do reconhecimento judicial ou extrajudicial da Usucapião:

"TJSP. 1009249-83.2022.8.26.0099. J. em: 13/03/2024. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA. Sentença de procedência. Insurgência dos autores, para pleitear sejam afastados, da nova matrícula do imóvel usucapiendo, os gravames registrados na matrícula anterior . Usucapião que é modo originário de aquisição da propriedade, com efeito liberatório. Logo, "se a propriedade anterior se extingue pela usucapião, tudo o que gravava o bem - e lhe era acessório - também se extinguirá" (REsp nº 2.051.106/SP, Relª . Minª. Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. 24/10/23). Precedentes do C . STJ. Penhoras e demais gravames incidentes sobre o imóvel objeto de usucapião que não poderão subsistir na nova matrícula. Sentença reformada, em parte. RECURSO PROVIDO".