Ciente que é pessoa de poucos amigos, ela deixou por escrito e registrado que dispensa velório…

Determinada conhecida passou a vida inteira colecionando inimizades, por razões de foro íntimo (ou até mesmo patológico, talvez); nunca fez questão de manter boas relações com os demais, especialmente seus colaboradores/subalternos. Não tenho capacidade - e nem posso - atestar se de fato era ou não alguma patologia, mas fato é que sempre foi muito inteligente e astuta, qual não foi a surpresa de deixar escrito e registrado, em Cartório, uma das suas últimas vontades que consistia em DISPENSAR VELÓRIO - justamente para não dar o "gostinho" aos seus inimigos de já vê-la sem vida - o que na sua mente certamente deveria ser sinônimo de "derrotada", "vencida", "derrubada"...

Realmente a mente humana é um mistério, é intrigante - e vira e mexe nos deparamos com isso em Cartório...

Fato é que esse tipo de manifestação pode ser sacramentada por dois Oficiais dos Registros Públicos: os Tabeliães de Notas e os Registradores de Títulos e Documentos. Enquanto o primeiro deles tomará as manifestações produzindo um INSTRUMENTO PÚBLICO, incensado por sua Fé Pública, atestando que naquele dia, na sua presença determinado cidadão compareceu e ali, livre de qualquer coação, induzimento, sugestão ou qualquer outro vício de vontade lhe confessou quais eram seus últimos desejos - o outro Oficial do Registro Público arquivará em seus assentos, de Títulos e Documentos, a manifestação já pronta e acabada - materializada como um INSTRUMENTO PARTICULAR. O Registro de Títulos e Documentos não é tão conhecido como o Tabelionato de Notas, mas ambos representam duas das cinco atribuições extrajudiciais que elencam o art.  da Lei de Notários e Registradores (Lei 8.935/94).

É importante destacar que - em que pese a possibilidade da Escritura Declaratória de manifestação de últimas vontades e do arquivamento de instrumento particular contendo tais disposições no RTD - a rigor, as disposições sobre o ENTERRO (inclusive a não realização do velório) devem ser manejadas através do CODICILO, como prevê o art. 1.881 do Código Civil atual:

"Art. 1.881. Toda pessoa capaz de testar poderá, mediante escrito particular seu, datado e assinado, fazer DISPOSIÇÕES ESPECIAIS SOBRE O SEU ENTERRO, sobre esmolas de pouca monta a certas e determinadas pessoas, ou, indeterminadamente, aos pobres de certo lugar, assim como legar móveis, roupas ou jóias, de pouco valor, de seu uso pessoal".

Hoje em dia, com o avanço da tecnologia, tais disposições podem ser gravadas inclusive através de um Smartphone, por exemplo, se mostrando plenamente válidas ainda assim, como aponta a segura doutrina de MARIA BERENICE DIAS (Manual das Sucessões. 2021):

"Diante das modernas formas de comunicação virtual e da difusão da internet, difícil exigir que o escrito seja manuscrito, datado e assinado (…) Precisa ser escrito, mas não precisa ser redigido pelo próprio titular (...). Tal como o testamento particular, pode ser elaborado por processo mecânico (CC 1.876 § 2º). Claro que não há como afastar a possibilidade de ser digitalizado (...). O certo é que a lei não pode mais se manter afastada da realidade da vida. As modernas ténicas eletrônicas e de comunicação, cada vez mais populares e portáteis, permitem gravar e filmar qualquer coisa com enorme margem de segurança. Assim, não há como deixar de reconhecer a VALIDADE da manifestação de vontade gravada ou filmada pelo de cujus, momentos antes de sua morte, e encontrada, por exemplo, em seu TELEFONE CELULAR. Não há codicilo mais seguro. Nada justifica não se dar cumprimento ao último desejo manifestado".