Por que ao Locatário pode ser possível em determinado momento pedir Usucapião do Imóvel que ocupa?

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QUASE TUDO NA VIDA PODE MUDAR, muitas vezes a mudança é positiva, outras vezes nem tanto. Tudo dependerá do ângulo em que se analisa a questão mas uma coisa é certa: a inércia, a inação e a falta de cuidado pode levar a perda de bens imóveis e tudo dentro do que a Lei legitimamente autoriza. Em se tratando de Usucapião temos que, via de regra, a qualidade da posse exercida sobre o bem manterá o mesmo caráter com que foi adquirida, a teor do art. 1.203 do Código Reale:

"Art. 1.203. Salvo prova em contrário, entende-se manter a posse o mesmo caráter com que foi adquirida".

Como resta claro no dispositivo, admite-se a produção de prova em contrário e é nesse ponto que reside a POSSIBILIDADE de alguém que venha exercendo a posse infértil para usucapião (como a posse "ex locato") passar a gestar a possibilidade de adquirir legalmente a propriedade imobiliária (e também a propriedade mobiliária) através da Prescrição Aquisitiva (também conhecida como Usucapião). Usucapião é perda mas também é aquisição, como sempre falamos.

Comentando o referido artigo 1.203 acrescenta o ilustre Desembargador do TJSP, Dr. FRANCISCO LOUREIRO (Código Civil Comentado. 2021):

"Como foi comentado anteriormente, possível é a alteração do caráter da posse, mediante CONVERSÃO DA POSSE de boa-fé em posse de má-fé, ou vice-versa, bem como da posse justa em posse injusta, ou vice-versa. A questão é como se opera essa alteração. (...) A presunção, como se extrai do preceito, é relativa, comportando, portanto, prova em sentido contrário. (...) Essa alteração da causa [da posse] pode dar-se como decorrência de uma relação jurídica ou por mudança ostensiva do comportamento fático do possuidor".

Necessário colacionar inclusive que a possibilidade da "INTERVERSÃO DA POSSE" (que permite a Usucapião em favor de por exemplo, quem possui ou possuía o imóvel a título de locação) encontra respaldo em Enunciado do Conselho da Justiça Federal, que destaca:

"ENUNCIADO 237 da III Jornada de Direito Civil, 2004: Art. 1.203: É cabível a modificação do título da posse - interversio possessionis - na hipótese em que o até então possuidor direto demonstrar ato exterior e inequívoco de oposição ao antigo possuidor indireto, tendo por efeito a caracterização do animus domini".

Efetivamente, como aprendemos ainda nos bancos acadêmicos, a posse direta exercida pelo locatário não pode frutificar em Usucapião em momento algum, TODAVIA, não se pode negar que, na forma do art. 1.203, sendo admitido no ordenamento jurídico o fenômeno da "interversão da posse" ou ainda "transmudação da posse" a Usucapião poderá ser viabilizada e reconhecida (JUDICIAL ou EXTRAJUDICIALMENTE) quando demonstrada a modificação da causa da posse, do caráter da posse assim como os demais requisitos da prescrição aquisitiva, conforme a modalidade pretentida. Ora, consabido que quando o locatário não satisfaz sua obrigação de pagar os aluguéis (inc. I, art. 23 da Lei de Locações) sujeitar-se-á à Ação de Despejo por parte do locador - que por sua vez não deve DORMIR (a conhecida parêmia do Direito aqui também se aplica: "Dormientibus Non Sucurrit Ius"). Em outro cenário - mas que igualmente serve de exemplo - resolvido o contrato pelo termo e nele permanecendo o então locatário sem realizar qualquer pagamento a título de aluguel - e também nessa segunda hipótese, constatada a inércia do titular registral em reaver legitimamente o seu bem imóvel - teremos também evidenciado o abandono que pode com clareza delinear o cenário ideal para a gestação da prescrição aquisitiva em favor do ocupante.

Em outras palavra, ainda que a relação de posse do bem tenha se iniciado por uma LOCAÇÃO a mudança no caráter da posse pode sobrevir e modificando o cenário permitir que o ocupante se arvore no direito de postular a aquisição prescritiva e, decerto, terá êxito na sua pretensão se comprovar cabalmente o preenchimento dos requisitos - como inclusive confirma a elucidativa decisão do TJRS:

"TJRS. 70080107485. J. em: 10/04/2019. APELAÇÃO CÍVEL. USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA ESPECIAL. ART. 1.238, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CC. PRAZO DE DEZ ANOS IMPLEMENTADO. (...). INTERVERSÃO DA POSSE. RELAÇÃO LOCATÍCIA EXTINTA A PARTIR DO INADIMPLEMENTO DOS ALUGUEIS. POSSE AD USUCAPIONEM. Iniciada a posse dos autores a partir de relação locatícia estabelecida com o anterior proprietário do imóvel, ocorre a interversão da causa possessionis a partir do momento em que o locatário deixa de adimplir os alugueis e o proprietário nada faz para reverter essa situação. Apesar de o art. 1.203 do CC estabelecer que, salvo prova em contrário, manterá a posse o mesmo caráter com que foi adquirida, a situação dos autos é típica hipótese de ALTERAÇÃO DA CAUSA POSSESSIONIS: a posse que originariamente era inapta para a usucapião, passa a ser tida como posse ad usucapionem pela presença de atos externos praticados pelo possuidor (animus domini), derivados da CONDUTA OMISSIVA do proprietário. Iniciada a posse ad usucapionem quando ainda em vigor o CC de 1916 e atentando-se para o fato de que os autores estabeleceram no imóvel a sua moradia habitual, incide a hipótese a usucapião extraordinária especial prevista no art.... 1.238, parágrafo único, do CC, com aplicação imediata a partir do disposto no art. 2.029 do mesmo diploma legal. Desnecessidade, contudo, do acréscimo de dois anos previsto na regra de transcrição, tendo em vista a implementação do prazo da prescrição aquisitiva em 2006. Comprovado, pelos autores, o exercício da posse sobre o imóvel, sem oposição, durante mais de dez anos ininterruptos, fazem-se preenchidos os requisitos para a aquisição da propriedade com fundamento no art. 1.238, parágrafo único, do CC, acarretando a PROCEDÊNCIA DA AÇÃO DE USUCAPIÃO e a improcedência da ação de imissão de posse. (...). APELO PROVIDO. UNÂNIME".