Quero regularizar por Usucapião meu apartamento mas o Prédio não está regularizado no RGI. É possível?

Usucapião

A usucapião é um instituto jurídico que permite a aquisição da propriedade de um bem pela posse prolongada, contínua, mansa e pacífica, com ânimo de dono, desde que preenchidos os requisitos legais específicos para cada modalidade. No contexto de imóveis urbanos, especialmente apartamentos, a questão se torna mais intrincada quando o edifício em que a unidade está inserida não possui sua construção averbada na matrícula do terreno no Registro de Imóveis (RGI), ou quando as unidades autônomas não estão individualizadas.

A regularização de um apartamento por usucapião, em tese, é plenamente possível, pois a legislação brasileira prevê diversas modalidades, como a usucapião extraordinária (posse por 15 anos, independentemente de justo título e boa-fé), ordinária (10 anos, com justo título e boa-fé), e as especiais (urbana, rural, familiar), com prazos reduzidos e requisitos específicos. O cerne da questão reside na individualização da posse e na possibilidade de se usucapir uma fração ideal do terreno correspondente à unidade, juntamente com a construção sobre ela.

É fundamental compreender que a usucapião constitui um modo originário de aquisição da propriedade. Isso significa que o direito de propriedade não deriva de um título anterior, mas nasce da própria posse qualificada, exercida por determinado lapso temporal. Dessa forma, a usucapião não se confunde com a situação registral pré-existente do bem. A sentença judicial que reconhece a prescrição aquisitiva possui natureza DECLARATÓRIA, ou seja, apenas formaliza um direito já consolidado pela posse, servindo como título hábil para o posterior registro no Cartório de Registro de Imóveis, independentemente de irregularidades registrais anteriores.

Contudo, a ausência de regularização do prédio no RGI representa um desafio. Quando um edifício não está averbado, legalmente, o que existe é um terreno com uma construção não oficializada. As unidades autônomas, como apartamentos, não possuem matrículas individualizadas, sendo consideradas meras frações ideais do terreno. Isso significa que, para fins registrais, não há um "apartamento" como unidade jurídica independente, mas sim uma parte ideal de um todo maior, o que exige uma abordagem jurídica específica para a comprovação da posse exclusiva e delimitada sobre uma unidade específica.

A jurisprudência pátria tem se posicionado de forma consolidada no sentido de que a usucapião de unidades autônomas em edifícios irregulares é viável. O entendimento é que a posse sobre a unidade, mesmo em um CONDOMÍNIO DE FATO, é exercida de forma individualizada e com ânimo de dono, caracterizando uma posse pro diviso. Os tribunais superiores, inclusive, já firmaram a tese de que o processo de regularização urbanística ou registral não impede o reconhecimento da usucapião, e que normas infraconstitucionais não podem impor restrições que impeçam o reconhecimento do direito à usucapião quando preenchidos os requisitos constitucionais e legais. Nesse sentido:

"TJCE. 01729365920188060001. J. em: 02/10/2024. APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO CIVIL. AÇÃO DE USUCAPIÃO. SENTENÇA DE EXTINÇÃO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO POR INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. IMÓVEL INTEGRANTE DE CONDOMÍNIO EDILÍCIO NÃO REGULARIZADO. DISPENSABILIDADE DO PRÉVIO REGISTRO IMOBILIÁRIO. USUCAPIÃO QUE É MODO ORIGINÁRIO DE AQUISIÇÃO DE PROPRIEDADE VIA SENTENÇA DECLARATÓRIA. TEMA REPETITIVO Nº 1025 DO STJ . ANULAÇÃO DE SENTENÇA PARA REGULAR PROCESSAMENTO DO FEITO. APELAÇÃO CONHECIDA E PROVIDA. 1. Trata-se na origem de Ação de Usucapião Extraordinária, proposta visando a aquisição de propriedade e o respectivo registro em cartório de apartamento, localizado nesta Urbe, ocasião em que afirma a parte autora, ora apelante, que foi necessário ingressar com a lide em tela em razão da construtora nunca ter conseguido regularizar a documentação imobiliária do edifício, não tendo sequer unificado as matrículas dos terrenos em que fora construído o empreendimento. 2. Em análise, tem-se que a decisão de extinção sem resolução do mérito foi fundamentada na alegação de irregularidade do condomínio onde se localiza a unidade imobiliária, o que impossibilitaria a formalização do registro da propriedade, uma vez que o condomínio não teria sua regularização completada e o imóvel não possuiria matrícula individualizada. Contudo, tal entendimento, que vincula a possibilidade de aquisição da propriedade pela usucapião à regularidade do condomínio edilício, contraria o posicionamento adotado pelo STJ no Tema 1025, que expressamente reconhece que o processo de regularização urbanística ou registral não impede o reconhecimento da usucapião. A ausência de regularização formal do condomínio não interfere no direito da apelante de ver reconhecida sua propriedade pela via da usucapião, sendo o registro apenas uma consequência da sentença declaratória, não uma condição para o exercício da posse e do domínio. 3. O Supremo Tribunal Federal (STF), no RE nº 422.349/RS, também decidiu que normas infraconstitucionais, como planos diretores ou leis municipais, não podem impor restrições que impeçam o reconhecimento do direito a usucapião, quando preenchidos os requisitos estabelecidos pelo art. 183 da Constituição Federal. Assim, ao negar a procedência da ação de usucapião com base em irregularidades urbanísticas, a sentença violou o entendimento consolidado dos Tribunais Superiores. (...) Portanto, a ausência de matrícula individualizada não constitui um obstáculo insuperável para a obtenção do registro de propriedade após o reconhecimento judicial da usucapião. (...)".

É imprescindível a produção de provas robustas que demonstrem a posse exclusiva sobre a unidade, o pagamento de despesas condominiais (ainda que informais), contas de consumo individualizadas, reformas e benfeitorias realizadas no apartamento, e qualquer outro elemento que evidencie o exercício da posse com "animus domini" sobre aquela porção específica do imóvel. A planta do edifício, mesmo que não averbada, pode ser utilizada como elemento de prova para identificar a unidade, e a Lei de Registros Públicos, em seu artigo 216-A, § 6º, autoriza o Oficial do Registro de Imóveis a abrir uma nova matrícula para o imóvel, mesmo que o procedimento de usucapião se dê de forma administrativa/extrajudicial.

Em suma, embora a ausência de regularização do prédio no RGI adicione uma camada de complexidade, não inviabiliza por completo a usucapião do apartamento. O processo demandará uma ação judicial de usucapião que contemple a declaração da propriedade da fração ideal do terreno e da construção correspondente à unidade, e, posteriormente, a averbação da construção do edifício e a instituição do condomínio. A assessoria jurídica especializada é fundamental para analisar a viabilidade do caso concreto e conduzir o procedimento com segurança, garantindo a efetivação da função social da propriedade.